Conto de Fodas - Bela Adormecida

Burra. Essa é a palavra que a define. Bonita, porém burra. Na flor da juventude e no auge da estupidez. Vou explicar com mais calma e com certeza com mais detalhes que na cabeça de Aurora.
Ninguém poderia, e nem tenta contestar sua beleza. A pele mulata de aparência aveludada, quadril largo e coxas bem definidas, os lábios carnudos que mesmo quando não se moviam expressavam a libido que era acentuada pela cintura fina. Os cabelos negros e encaracolados corriam pelo rosto delgado e tentavam, por sua vez, esconder os olhos redondos e verdes como um mar em dia claro. Mas nem toda a beleza pôde livra-la do que aconteceria, pelo contrário até ajudou no decorrer dos fatos.
Aurora morava com seu avô em una pequena casa no bairro de Santa Tereza, centro do Rio de Janeiro. Vivia ali desde que nascera. Sua mãe havia se mudado para o nordeste - afim de cuidar de algum parente enfermo - mas a jovem preferiu ficar na Cidade Maravilhosa. Aurora sempre foi una filha dedicada. Estudiosa, nunca preocupou sua mãe e nunca deixou de cumprir com suas obrigações. Agora como neta não seria diferente. O dia da mulata era resumido em ir para a faculdade de nutrição pela manhã e as tardes eram alternadas entre caminhadas a beira mar, cursos complementares e estágios.
Embora bonita, não possuía namorado - nenhum relacionamento tão sério a ponto de impedir suas noites de festas. Ela já conhecia bem à noite no centro da cidade e sabia os locais onde poderia encontrar diversão aliada à gente bonita. Corria com os dias da semana pelos bares e boates sempre agitados no inicio da noite.
Era quarta-feira, mas nem por isso o bar estava vazio. Um sobrado antigo de dois andares com a faixada pintada de verde abrigava no primeiro nível um bar com balcão de vidro cercado por dezenas de mesas e por clientes que gesticulavam para os bartenders tentando serem atendidos. O segundo piso era um grande salão com chão de madeira e janelas compridas que iam da linha da cintura até quase a altura do telhado. Na parte de cima havia apenas um palco onde se apresentavam alguns grupos e meia dúzia de mesas altas sem bancos enfileiradas ao fundo. Naquela noite o som que tomava o ambiente e ecoava pela rua a frente era o Samba. Ao chegar à festa, a malemolente, já estava tomada pela vibração que vinha de dentro do casarão. Aurora tinha a batucada como seu ritmo favorito. Sem perder tempo se acotovelou até o bar e conseguiu comprar um balde com cervejas no gelo. Segurando pela alça, partiu em direção à escada em espiral que levava ao salão no andar de cima. O lugar estava tomado por casais que dançavam e por alguns solteiros que por hora desejavam companhia. Inevitavelmente Aurora seguiu rebolando até o fundo do sobrado para lá então usar una das mesas e apoiar o balde de cerveja, seu copo e sua bolsa que trazia a tira colo. Em pouquíssimos segundos os solteiros e solteiras - acredite Aurora era o tipo de mulher que despertava o desejo não somente do sexo oposto - começaram aborda-la. Acostumada e com toda a simpatia ela ia dispensando um a um após breve apresentação. Em meio a tanta gente que se aproximava vez ou outra, a amante do samba permitiu que um homem usasse a mesa para apoiar também o balde que trazia equilibrando acima do ombro. Ela não soube dizer se fora a beleza dele; moreno, cabelos negros e curtos, alto e de corpo definido, ou se fora a falta de pretensão no sorriso quando Fábio se apresentou. Os dois começaram a conversar e logo estavam tão à vontade na companhia um do outro que pareciam velhos amigos.
Fábio não queria perder tempo diante das constantes investidas que ela vinha recebendo, então se arriscou e a agarrou pelo braço tentando arrastá-la para una dança. Não que ela realmente tenha recusado, mas fez menção à mesa onde estavam os 2 baldes pela metade. O moreno disse que eles poderiam dançar ali mesmo. Dessa vez ele a puxou pela cintura e não houve qualquer resistência da parte dela. O requebrado e o molejo da passista eram quase hipnóticos. Muitos pararam para acompanhar o casal que seguia em um balanço não ensaiado, porém de perfeita sincronia. Coxas se tocavam, mãos deslizavam pela cintura e pelos quadris sem intenção de parar. Tórax e costas se uniam e braços se enroscavam. Os rostos ficaram alinhados por um longo tempo. Ela mordeu o canto da boca e Fábio avançou feito um animal tomado pelo instinto. Ele a segurava pela nuca com seus dedos entre os cabelos alisados dela. Ela afrouxou a pegada e deixou os braços penderem ao lado do corpo completamente absorta em um beijo resfolegante.
Um pouco cansada pela dança, Aurora fez una pausa. Voltou à mesa e bebeu um gole de cerveja. Fábio acompanhou o gesto da moça. Ela deixou o copo na mesa e com o dedo esticado percorreu a circunferência do tampo da mesa umedecendo a ponta com a água fria que escorria do gelo. Neste movimento, uma farpa perfurou-lhe o indicador. Ela tentou enxergar o pequeno pedaço de madeira, mas a pouca luminosidade do lugar não permitia. Ela disse que tentaria remover a incomodante farpa
Não levou muito tempo para sair do lavabo. Traçou una linha reta pelo salão atravessando na diagonal até chegar junto de Fábio. Tomou um gole de cerveja e sentiu um gosto amargo. O liquido esquentara no meio tempo que ela esteve ausente e o rapaz se manifestou para completar o copo. Outro gole e o gosto já se assemelhava ao normal. Ela não soube identificar a sensação que seguiu os instantes após o terceiro gole. Suas pernas falharam por um segundo e teve que se segurar no rapaz. O som ficou abafado, a visão distorcida e o corpo perdeu as forças. Escuridão total.
O sorriso branco que Fábio deu e ela não reconheceu no inicio era de um canalha, um canalha que aproveitou o momento em que Aurora estava longe para drogar sua bebida.
Una perna jogada em cima da cama e o corpo estirado num chão sujo de hotel. Acordou sentindo o piso gelado sob suas costas e a cabeça latejava. Tentou se orientar procurando a hora no relógio de pulso, mas não o encontrou. Procurou a bolsa para pegar o telefone celular, porém ela também não estava ali. Só então se deu conta de que estava nua e que fora violentada. Experimentou o pânico enquanto buscava na mente imagens perdidas e desconectadas. Encostou-se à parede e escorregou o corpo até ficar sentada. Abraçou os joelhos e tombou para o lado, ficando na posição fetal de olhos fechados esperando que alguém pudesse acorda-la daquele sonho ruim. Mas ninguém poderia. Na história dela não havia espaço para príncipes encantados.

Por Phillip M Elliot